O ser humano e a busca da felicidade


Ora, mas o que vem a ser a vida feliz? Será que todos os humanos a desejam? Qual o caminho que nos leva a ela? Que relação há entre conhecimento e felicidade? Até que ponto o avanço do saber e da técnica não gera um estado de angústia no homem contemporâneo? A sociedade de consumo será o caminho para satisfazer o desejo de felicidade do ser humano?
No decorrer da História da Filosofia a questão da felicidade praticamente sempre esteve presente, pelo menos até meados do século XVIII, quando a temática passou a ser menos abordada nas obras filosóficas. Dois exemplos disso são Epicuro, filósofo grego de 341 a 270, e Santo Agostinho, pensador cristão de 354 a 430.
Epicuro em sua Carta sobre a Felicidade expõe ao seu interlocutor, Meneceu, que nunca é tarde ou cedo para se dedicar à filosofia e se alguém afirma isso é como se estivesse dizendo que já passou ou não chegou ainda a hora de ser feliz. Portanto, para Epicuro é importante para o ser humano cuidar daquelas coisas que o ajudem a atingir a felicidade. Para isso é preciso colocar em prática determinados ensinamentos para se libertar de certos medos que impedem o homem de se sentir feliz. Primeiramente é necessário ter uma visão clara da divindade não seguindo o juízo falso do povo que muitas vezes vê a divindade como uma realidade capaz de punir ou premiar os humanos, isso não é possível. Os deuses existem, mas não possuem essa capacidade.
Num segundo momento é preciso se libertar do medo da morte, isto é, da idéia de que na morte podemos ter uma experiência forte de sofrimento e dor. Ora, a experiência da dor pressupõe a possibilidade de se ter sensações, pois não havendo sensações não é possível a presença de qualquer tipo de dor. Só há sensação se estamos vivos, a morte é justamente a ausência total de qualquer sensação. Portanto, não há porque temer a morte pois quando eu sou ou estou vivo ela não é, e quando ela é eu não sou mais impossibilitando qualquer tipo de sofrimento. O sábio percebe, desta maneira, que morrer não é um mal e viver não é um peso. Ele procura aproveitar o que a sua existência pode lhe dar de melhor, realizar seus desejos, independente se vai ser uma vida longa ou curta. Além disso, percebe que há desejos naturais e outros inúteis. Dentre os naturais apenas alguns são necessários e entre esses apenas alguns são fundamentais para a vida feliz.
Enfim, sendo a finalidade da felicidade a saúde do corpo e a serenidade do espírito, e também sendo o prazer o início e o fim da vida feliz, é preciso, segundo Epicuro, afastar-se do medo e da dor procurando realizar todas os nossos desejos, mas com moderação, privilegiando não o prazer dos intemperantes ou do gozo dos sentidos. O prazer buscado é a ausência de sofrimentos físicos e de perturbações da alma. Logo, a prudência, a moderação, a justiça é condição para a vida feliz.
Santo Agostinho, autor de várias obras que possuem uma influência muito grande sobre a cultura ocidental, dentre elas: As Confissões, A Cidade de Deus etc, entende que todo ser humano tem um desejo natural de ser feliz. Se perguntarmos a qualquer pessoa se quer ser feliz, todas dirão que sim. Por meio de uma metáfora, ele ilustra que a vida é como se fosse um grande oceano, no qual existem vários tipos de navegadores. A terra firme é a pátria da bem-aventurança, a vida feliz e o porto a filosofia que dá acesso a ela. Alguns navegadores se afastam menos da terra firme e, portanto tem mais facilidade para retornarem, pois não esqueceram o caminho. Outros se distanciam muito e acabam se perdendo no meio das tempestades, pois não lembram do caminho do retorno. Eles querem voltar, mas não conseguem por si mesmos. Além disso, há um rochedo que acaba atrapalhando ainda mais esses navegadores, que é o rochedo do orgulho.
Essa metáfora mostra como o ser humano é um ser de desejo que está à procura de algo que nada mais é do que a vida feliz. Porém o seu orgulho lhe atrapalha não possibilitando ver o verdadeiro caminho que lhe leva até a pátria da bem-aventurança.
Para Santo Agostinho o ser humano só pode ser feliz se ele possui o que deseja. Todavia não adianta possuir o que se deseja se não for um bem. Assim, não é qualquer coisa que pode dar ao ser humano a vida feliz, é preciso que seja um bem e um bem imutável, pois caso contrário estaria fundamentando a felicidade em algo passageiro. Ora, o único bem imutável é Deus. Portanto, só é feliz quem possui e conhece a Deus.
Todavia, há um abismo entre Deus e os homens. De um lado, o absoluto, do outro, o relativo. Todavia, apesar dessa desproporção, o homem quer estabelecer uma relação com Deus e possuí-lo. Aqui está a grande razão da inquietude humana para Agostinho: o desejo de Deus, da Verdade, da Vida Feliz. O homem é um ser inquieto porque não apenas foi feito por Deus, mas para Deus. O que significa isso?
Por meio do pecado o homem se afastou de Deus. Porém, esse afastamento foi no âmbito moral. Na medida em que o homem fez um mau uso do seu livre arbítrio, dessa capacidade de escolher entre uma coisa e outra, e preferiu os bens inferiores em vez do bem supremo, ele se afastou moralmente do seu criador, perdendo sua liberdade, que é justamente, para Agostinho, a capacidade de usar o livre arbítrio corretamente, isto é, conforme o fim para o qual ele nos foi dado pelo criador. Entretanto, ontologicamente o ser humano não se afastou de Deus, pois o seu ser continua sendo sustentado, conservado pelo absoluto. Portanto, não é possível um afastamento absoluto de Deus, mas apenas moral.
Assim, o bispo de Hipona vê o homem, após o pecado de Adão, como um ser mortal, pecador e debilitado. Nessa condição, a criatura humana anseia por Deus e quer unir-se a ele, pois só nele encontrará repouso. Contudo, ao mesmo tempo, experimenta o jugo do pecado, suas fraquezas e limitações.
Desta maneira, devido à condenação que sofreu por causa do pecado, o homem, tanto pela ignorância do bem como pela incapacidade de realizar o bem que se deseja, demonstra que foi atingido tanto na sua inteligência como na sua vontade. Quando sabia, não quis agir bem e, dessa maneira, foi privado de notar o que é bom. E quando podia agir bem, não quis, e, assim, perdeu o poder de praticar o bem quando quiser.
Ora, como superar essa condição? Qual a trajetória para alcançar a vida feliz, a beatitude?
Vê-se, pois, que para Santo Agostinho se faz necessário a figura de um mediador entre Deus e os homens.  Se o mediador fosse apenas homem, não nos conseguiria levar até Deus, pois estaríamos seguindo alguém igual a nós, pecador, fraco, debilitado. E, se fosse apenas Deus, não o compreenderíamos, porque não podemos entender o que não somos, continuando assim o abismo inicial.
Assim, o verdadeiro e único mediador entre Deus e os homens é Jesus Cristo, Deus e homem, porém, é mediador justamente enquanto homem, pois enquanto Verbo, é igual a Deus, não podendo ser intermediário. Contudo, é importante salientar que o caminho, que é o Cristo, é algo divino, no sentido de ser oferecido, proporcionado por Deus, que é a própria vida feliz, e não pelos homens.
Assim, Cristo ensina a verdadeira via ou atitude que leva o homem de volta a Deus, a humildade.
Enfim, para Agostinho, o homem, por intermédio de Cristo pode experimentar o que não é pelo que é (o divino pelo humano). A criatura humana não podendo atingir Deus, este se fez homem e, sendo possível a um homem aproximar-se de outro, será por um homem, plenamente divino, mas também plenamente humano, que o homem atingirá a Deus, Cristo Jesus. Dessa maneira, Deus se fez homem, a fim de que, seguindo um homem, o que lhe é possível, o homem alcançasse a Deus e assim a vida feliz.
Vemos pelos exemplos de Epicuro e Santo Agostinho que a temática da vida feliz pode ser abordada a partir de perspectivas bem diversas. Além destes dois autores muitas outras respostas foram dadas sobre a questão da felicidade na história da humanidade.
No mundo contemporâneo percebemos que o ser humano continua se questionando sobre o que é ser feliz e qual o caminho que nos leva até a vida feliz. Parece que realmente o desejo de ser feliz é algo muito forte na natureza humana. Porém, ao mesmo tempo, cada ser humano se depara com o seu drama existencial, isto é, a experiência da própria finitude, das próprias limitações, das frustrações e injustiças da vida. E tudo isso, muitas vezes, acaba esvaziando de sentido a busca da felicidade. Esta acaba parecendo um desejo irrealizável ou uma verdadeira ilusão. Quando pensamos que atingimos a felicidade somos surpreendidos pelas contingências e dores da vida.
Todavia, no mundo contemporâneo, na sociedade do hipercapitalismo e do consumo onde tudo é transformado em mercadoria, parece que não se pensa sobre o drama da existência humana, mas ao contrário, tenta-se negar esse drama e vender a felicidade associando-a a determinados produtos e assim ser feliz passou a ser uma questão de ter coisas, de poder consumir certos produtos. Ter dinheiro, comprar roupas, viajar, ter fama, satisfazer todos os desejos pessoais etc., é vendido como passaporte para a vida feliz.
A questão é que esta postura acaba gerando uma ansiedade e um vazio existencial maior nas pessoas, despertando muitas vezes depressões e distúrbios sérios nos indivíduos e na sociedade em geral. As pessoas acabam não sabendo o que fazer com suas frustrações e dores. O individualismo se acentua e a perda de sentido da vida é inevitável. Além disso, a crise ética que percebemos na sociedade é um reflexo desta hipervalorização do ter em detrimento do ser. Para se ter uma postura ética é preciso se questionar sobre o sentido radical do humano, sobre a importância do outro na nossa vida e principalmente sobre o nosso modo de ser.
Enfim, talvez seja realmente difícil dizer onde está a felicidade ou o que é a vida feliz, apesar de todos desejarem uma fórmula. Porém, talvez o mundo contemporâneo nos mostre, com todos os seus problemas, que a felicidade não está no ter e na mera materialidade da vida, mas sim no ser e no ir além de si mesmo abrindo-se à Transcendência.
Autor
Autor de livros e artigos nas áreas de Filosofia e Teologia, ministra cursos e palestras em todo o Brasil e no âmbito Internacional. Estuda o final da Antiguidade e o Medievo, e suas relações com o pensamento contemporâneo. Leia mais na Bio.

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